Infodemia: a crise na era da informação

Em meados de 1485, a população da Europa era assolada pela doença do suor. O desconhecimento médico e científico na época contribuiu para acelerar o óbito do infectado, que ocorria entre 3 e 24 horas após o início dos sintomas. Se trouxéssemos a doença do suor para os dias atuais, teríamos cenários diferentes? Com o desenvolvimento geral da sociedade, os conhecimentos científicos aplicados em medicina e em medidas sanitárias seriam suficientes para atenuar a gravidade da epidemia. Porém, o crescimento populacional e o avanço da tecnologia dos meios de transporte potencializariam o contágio da doença, gerando uma possível pandemia em níveis catastróficos se a transmissão fosse feita de forma direta. Os cenários não seriam iguais, mas também não seriam tão diferentes: o obstáculo em comum entre as épocas seria o desconhecimento.

O desconhecimento do século XV diverge do desconhecimento que temos agora, caracterizado pela desinformação. Não demoraria para que as redes e mídias sociais fossem abarrotadas com notícias desonestas e sensacionalistas sobre a doença do suor. Diferente de falta de informação, a desinformação é a disseminação de informação inverídica, seja por um ato deliberado ou por um ato copiado desproposital. Na primeira situação é onde encontramos a principal origem das fake news, elaboradas por um grupo de pessoas com predisposição em distorcer a realidade para benefício de alguma crença particular. Neste ambiente, as fontes confiáveis de informação são intencionalmente ignoradas e se tornam o alvo principal das notícias falsas.

A tecnologia avançada agora permite que as notícias e informações sejam compartilhadas tão logo o leitor as receba em suas mãos. Com isso, a facilidade do acesso a internet trouxe consigo uma espécie de imediatismo, em que o leitor apenas reproduz um conteúdo sem desenvolver nenhum ceticismo diante da gigantesca quantidade de entulho eletrônico que lhe é apresentado. Não é difícil notar os impactos e consequências desse imediatismo: o início de 2020 foi marcado pelo surto do novo coronavírus e pela histeria nas redes sociais sobre o assunto. Ao ponto que a COVID-19 se espalhava por todos os continentes e se tornava uma pandemia, a infodemiacrescia proporcionalmente à intensificação das medidas de isolamento social.

A situação é tão crítica que, em março deste ano, o governo francês precisou alertar a população via Twitter que a cocaína não protege contra a COVID-19. Beber alvejante, prata coloidal e álcool adulterado são outros dos diversos “conselhos” que circulam na internet. A irresponsabilidade da criação e da propagação de informações falsas vai muito além da descredibilização de fontes confiáveis. Com o boato do álcool adulterado, 210 pessoas morreram no Irã acreditando que seriam curados ao ingerir a bebida. Nessas circunstâncias, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fica com o árduo trabalho de orientar as políticas públicas de saúde e carrega o fardo de monitorar o máximo de informações sobre o vírus. 

Na era digital, a população recorre à internet como principal fonte de informações e notícias. Uma pesquisa do Ibope de 2018 revela que 66% dos brasileiros consideram os sites de notícias como as fontes mais seguras na busca de informações, mas que, infelizmente, 90% dos usuários disseram já ter sido impactados com notícias falsas. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que 73,7% das informações e notícias falsas sobre o novo coronavírus circularam no WhatsApp, 10,5% foram publicadas no Instagram e 15,8% no Facebook, as três redes sociais mais acessadas pelos brasileiros. As redes sociais em que os usuários são os principais criadores de conteúdo tornam-se mais perigosas por conta da autonomia que surge quando a verificação das políticas de uso da plataforma falha. 

A empresa de Mark Zuckerberg, alvo de críticas pelo envolvimento em manipulação de dados e disparo de notícias falsas durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos e do Brasil, anunciou no primeiro semestre de 2020 medidas para conter a propagação de fake news sobre a COVID-19. A Google, Twitter e YouTube também apresentaram novas providências para lidar com a constante desinformação. As soluções se resumem em priorizar as informações verídicas sobre o vírus e na exclusão de conteúdos falsos ou com potencial de causar danos à saúde do usuário. As medidas soam um pouco gentis frente a um possível banimento permanente do usuário infrator: parece ser o mais sensato, mas sequer foi cogitado ou anunciado pelas grandes plataformas.

A desinformação não se limita somente às redes sociais, como ela também ganha voz por meio de pessoas públicas e políticas. A invenção descabida que o vírus foi uma criação do governo chinês para conquistar o mundo e a indicação de medicamentos de eficácia não comprovadas são alguns dos vários discursos de políticos despreparados, que deveriam ser a principal ponte entre as fontes confiáveis de informação e a população. Enquanto influencers organizam festas ostentativas e exibem o desrespeito às regras de confinamento e distanciamento social em seus perfis de mídia, outros 50 milhões de brasileiros tentam a sorte solicitando o auxílio emergencial por terem perdido seus empregos ou suas principais fontes de renda. O desfavor, que vai além da romantização excessiva da pandemia e da desigualdade social escancarada, está na falsa impressão de que a COVID-19 é inofensiva e de que as medidas preventivas da quarentena possam ser afrouxadas.

Ainda que existam fóruns virtuais sem qualquer política de uso, as principais plataformas acessadas pelos internautas devem garantir o uso ético e consciente das ferramentas oferecidas, e, em paralelo, as figuras políticas e públicas não devem sair impunes de discursos imprudentes. É um trabalho conjunto a ser feito pela sociedade e pelas entidades governamentais, dada a possibilidade de punições legais para indivíduos que propagarem inverdades sobre determinado assunto.

Podemos entender que o desconhecimento é inerente à existência humana, mas a desinformação não é e não deve ser. O panorama do novo coronavírus desperta a reflexão sobre a autonomia irresponsável de criação de notícias e conteúdos, mas a infodemia não é uma exclusividade da situação atual. Ela existe desde a inquisição, em que mulheres eram queimadas por prepararem receitas medicinais, até o Holocausto, com a justificativa de que os judeus eram os culpados pela derrota na Primeira Guerra Mundial. Em qualquer que seja o contexto e a época, a falsa informação causa danos sérios para a sociedade porque distorce a visão da realidade e compromete a possível resolução de um problema existente.

Os avanços científicos e medicinais dos tempos atuais não serão suficientes se a negação de uma pandemia, entrelaçada com a afirmação de uma teoria da conspiração do governo chinês, permanecer: a taxa de contágio da doença precisa urgentemente ser amenizada para que a superlotação dos hospitais seja diminuída. O desconhecimento sempre irá existir, mas a desinformação pode ser evitada. Em tempos de pandemia, a informação verídica também é vacina.

Referências:

  1. ALTARES, Guilhermo. A longa história das notícias falsas. El País, Madri, 18, junho, 2018. Seção Cultura. Disponível em:

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Ass: Mariana Vieira, Vitoria Castro

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